sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

"Uma Vida Bem Vivida" por Lyse Lauren





Uma pequena biografia de Chadral Rinpoche

Uma vida bem vivida

em 'Mestres de Sabedoria' de Lyse Lauren



Amado Senhor do refúgio, jamais poderemos restituir vossa gentileza.
Mergulhando na vastidão da sabedoria
continuareis a beneficiar incontáveis seres sencientes.

Se você não refletir sobre morte e impermanência
não haverá como praticar o Dharma de forma pura.
A prática permanecerá apenas como aspiração,
algo constantemente adiado.
E então você sentirá remorso quando a morte vier,
mas daí será tarde!”


Kyabje Chadral Sangye Dorje Rinpoche




Enquanto trabalhava nas etapas finais da edição do meu livro, nas primeiras horas de uma manhã, recebi notícias de que meu mestre Chadral Sangye Dorje falecera em Parping, Nepal. Dias antes ao receber um comunicado de que ele não estava bem, tive o intuito de adiantar uma lista de coisas que estavam por ser feitas, preparar as malas e partir o quanto antes para o Nepal. Sabia muito bem que caso recebesse notícias de seu falecimento não teria como me programar e atender a todos os detalhes que precisasse para poder partir em seguida. E a 'notícia' veio naquele 5 de Janeiro de 2016.
Ele tinha realmente atingido o Tukdam, um estágio final de meditação, a 30 de Dezembro de 2015, às 17:35, mas pedira aos membros mais próximos de sua família que não anunciassem sua morte até que ele atingisse totalmente Maha Paranirvana. Assim, eles mantiveram o ocorrido em sigilo absoluto. Nem mesmo as pessoas que trabalhavam no local sabiam o que tinha acontecido.
Chadral Rinpoche viveu até a idade considerável de cento e quatro anos, considerando-se o sistema Tibetano que inclui os meses de gestação que antecedem o nascimento. Sua longa e grandiosa vida foi de benefício para incontáveis seres sencientes. Ele guiou e tomou conta de mim por mais de vinte anos e a gratidão que sinto, junto ao sentido de profunda conexão que sempre haverá entre nós é algo que não é possível descrever em palavras. Junto a Dilgo Khyentse Rinpoche ele foi uma das pessoas mais centrais e importantes em minha vida.
Desde 2009 não tinha sido possível me encontrar face a face com Rinpoche mas para mim isso não era uma meta. Ele foi capaz de me guiar nos meus anos de retiro e fui extremamente afortunada por ser capaz de encontrá-lo quando precisei de suas orientações ou verificar minhas experiências; assim pude completar as prioridades necessárias daqueles momentos. Todavia, outros não tiveram tanta sorte e todo um novo grupo de pessoas, jovens e velhas, de vários tipos e lugares, perderam a preciosa oportunidade de contato direto com ele. No entanto, sua influência continuou a alcançar distâncias e amplitudes. Antes de 2009 Rinpoche era muito acessível embora ele jamais permanecesse muito tempo num único lugar. Houve ocasiões em que as coisas não caminharam da maneira que as pessoas esperavam mas isso era parte da beleza de seu estilo e expressão. Nunca foi um lama que se apegasse com o que lhe era querido, nem tampouco voltaria atrás uma vez que uma decisão fosse tomada.
Cento e quatro anos é um tempo considerável a ser vivido neste mundo. Rinpoche conheceu e influenciou inúmeras pessoas, salvou incontáveis vidas e praticou suas próprias convicções sem comprometê-las jamais, seja de que forma fosse. Sua vida foi de simplicidade e integridade e permanece como testamento e exemplo luminoso tanto para nós, afortunados o bastante para testemunhar ao menos uma parte dela, quanto para aqueles que não tiveram a mesma sorte. Ele viveu sua vida em mundos completamente distintos. Imagine o Tibete no começo do século vinte, muito antes da ocupação chinesa, e tente comparar essa época aos dias atuais! Ele transitou continuamente através de ambos, nunca perdendo um passo sequer, nunca falhando em sua determinação de beneficiar seres sencientes

Prático e Espontâneo

Rinpoche era um homem extremamente prático que não possuía sequer um traço de hipocrisia. Ele era tão direto a ponto de as pessoas o temerem. Ainda que fosse antes de mais nada um iogue tibetano, ele podia ser bastante convencional. Ainda assim, não era possível enquadrá-lo ou rotulá-lo seja como tradicional ou não-tradicional porque ele espontaneamente emergia de acordo com cada ocasião. Seu foco foi sempre a essência das coisas e ele tinha pouco tempo ou interesse em qualquer outra coisa que fosse. Era um ser que incorporava os ensinamentos do Buda, os quais 'adquirira' completamente através de sua própria prática e experiência. Assim ele encorajava seus estudantes a fazerem o mesmo.
A espontaneidade de Rinpoche surgia de viver o presente momento a momento, o que certamente dava margem a pequenos incidentes inesperados, alguns deles cheios de humor. Lembro de uma manhã em que estávamos atarefados nos preparando para ua viagem nas montanhas de Darjeeling. Pensávamos ter tudo à mão e quando disseram que o carro tinha chegado, Rinpoche levantou-se subitamente e começou a caminhar em direção à porta. Rapidamente pegamos todas as roupas que ele pudesse precisar e desajeitadamente começamos a tentar vesti-lo à medida que ele caminhava. Uma vez que ele se pusesse em movimento era difícil freá-lo. Sua filha, Semo Tara Devi, estava lá nessa ocasião e assim, ambas tentamos vestir-lhe um pulôver e cobri-lo com seu xale. Mas lá estava ele novamente apressado em direção à porta e assim Tara calçou-lhe um dos sapatos e eu o outro. Apenas quando Rinpoche já estava entrando no carro nós fomos capazes de perceber que ele tinha um sapato diferente em cada pé. Com certeza Rinpoche não notara.
Palavras vãs em livros de prateleira eram coisa para estudiosos. Rinpoche movia-se livremente pelos campos da experiência. Havia alegria e uma sensação luminosa de liberdade sem fronteiras a seu redor. No entanto era digno de nota o quanto Rinpoche era também um brilhante estudioso e autor de pelo menos três livros que foram extremamente lidos.

Autêntico

Ele foi educado de forma excepcionalmente orgânica; seu aprendizado veio através da experiência e revelou-se com considerável poder e autoridade por ser completamente autêntico. Sua autenticidade nunca me comoveu mais profundamente que numa ocasião quando um pequeno grupo de estudantes mulheres reuniu-se numa tarde em seus aposentos em Salbari Gompa para receberem os votos de Bodissatva.
Semanas antes desse evento, um estudante ocidental de longa data e eu estivemos discutindo particularmente a prática de Guru Yoga. Eu ficara profundamente impressionada pela maneira como meu amigo relatara algumas de suas experiências pessoais a esse respeito. Ele discorrera sobre as qualidades de diversos sadanas e práticas mas frisou que o Guru Yoga de Chadral Rinpoche era tão potente que as bênçãos como que fluíam e eram quase que palpáveis. Ele mencionara algo como o efeito de uma coisa que você pode quase segurar as bênçãos em suas próprias mãos e sentir-lhes o peso.
A imagem que essa descrição criou em minha mente permaneceu comigo muito claramente e naquela tarde, quando nos reunimos para receber os votos, eu me lembrei dela. Eu já tinha recebido votos de Bodissatva em várias ocasiões com outros professores; todavia, uma estudante europeia pediu que ele outorgasse essa bênção a ela e de repente eu me vi na afortunada posição de estar presente neste momento e ser, portanto, parte desse pequeno grupo. Eu estava embevecida com essa feliz ocorrência.
Devia haver cinco ou seis de nós presentes naquele dia. Se me recordo bem, éramos apenas duas mulheres estrangeiras, um casal de tibetanos e uma ou duas das filhas de Rinpoche. Naquele tempo, Rinpoche permanecia a maior parte do tempo no pequeno quarto da parte de cima de sua casa em Salbari. Fomos todos chamados e ele nos acenou que entrássemos em seu quarto e fechássemos as portas. Permanecemos alinhados diante dele, sentado em sua almofada de meditação e agasalhado num manto de pelúcia. Ainda que tivesse passado muito tempo junto com Chadral Rinpoche em situações informais, estive presente em poucas ocasiões em que ele ensinou formalmente ou deu transmissões. E essa foi uma dessas raras ocasiões.
Com sua voz profunda, ele nos pediu que fizéssemos três prostrações e enquanto fazíamos ele pegou seu sino, seu damaru (tambor) e começou a entoar a oração de linhagem do Longchen Nyingtik, A Essência Central da Vasta Expansão. A linhagem de Rinpoche é notavelmente curta e poderosa, originando-se em Kuntuzangpo, passada para Jigme Lingpa e Gyalway Nyugu, indo depois para Patrul Rinpoche, Nyoshul Lungtok e Khenpo Ngachung, quem por sua vez a transmitiu a Chadral Rinpoche e Nyoshul Khenpo.
Não me recordo de ter quaisquer expectativas do que estivesse por vir, exceto uma agradável sensação antecipada que de maneira alguma me preparou para o impacto do que viria a seguir. De forma súbita e inexplicavelmente eu fui arremessada a um estado fora do tempo e me senti plena de bênçãos de uma tal maneira que nem bem terminara minhas três prostrações, um fluxo de lágrimas tomou conta de mim. Eu não estava prevenida de forma alguma; sem lenços de tecido ou descartáveis e nem mesmo uma manga comprida de camisa que viesse em meu ausílio. Não eram lágrimas de emoção por alegria ou tristeza, eram lágrimas que fluíam de alguma fonte armazenada do meu ser. A cada momento que passava, era como se Rinpoche estivesse abrindo cada vez mais a torneira de uma fonte de bênçãos. Nunca tive tal reação em eventos anteriores em que fizemos os mesmos votos. Foi algo sem precedentes e me pegou completamente de surpresa.
Enquanto durou o evento eu continuei chorando. Lembro-me de sentir certo embaraço por não ser capaz de controlar o que estava acontecendo comigo ou mesmo assoar meu nariz. Eu estava completamente acabada, tanto que nem pude perceber se alguém mais ficou tão afetada quanto eu. Só me lembro do quanto me senti aliviada quando tudo terminou e pude correr para meu quarto, lavar meu rosto e me recompor novamente.

Convencional e Inconvencional

De várias maneiras, Rinpoche podia ser bastante convencional. Ainda assim, em outras situações ele era completamente o oposto. Um exemplo do quanto Rinpoche podia ser inconvencional, e do qual a maioria das pessoas não se dava conta antes de seu falecimento, o que veio a causar surpresas para muitas delas, somente veio à tona quando a casa da família em Parping foi aberta ao público. Nas paredes de Lhakhang, construídas dentro da propriedade, divindades hindus como Shiva e Parvati estavam pintadas. Do lado esquerdo do templo, Krishna e sua consorte Radha com todos os outros personagens e várias outras representações desse tipo.
Bem em frente à entrada do templo, localizado numa construção separada, um lingam de Shiva de tamanho considerável. Para alguns budistas tradicionais, isso pode parecer uma exentricidade grave para um lama e algo até bastante inexplicável. Todavia, Rinpoche tinha ido além da estreiteza da necessidade de confinar-se apenas ao panteão tibetano tradicional. Ele não via conflitos nos temas. O que essas imagens representam é uma expressão de energia em suas muitas e variadas formas e isso é universal. Em mais de uma ocasião eu estive com ele quando visitamos um templo hindu. Um lugar onde ele ia regularmente era o templo de Tiger Hill, próximo a Karjeeling e outros templos em lugares diferentes.

Integridade

Havia total integridade em tudo o que fazia e isso era sem dúvida o motivo pelo qual ele podia trazer o tradicional junto ao que não era tradicional. Deixou bem claro que não perpetuaria a si mesmo na linhagem dos tulkus e declarou abertamente que não haveria reencarnação. Essa seria sua última vida. Nos últimos anos, após o falecimento de vários mestres, o que acontece é que um número de tulkus se candidata e surge daí um amontoado de controvérsias. Rinpoche tomou sua posição como um límpido cristal, evitando assim qualquer complicação futura. Evitou sempre os mosteiros e grandes instituições e sublinhou consistentemente a importância da prática em retiros solitários com o intuito de ter experiência direta com os pontos essenciais do Darma.
Em muitas ocasiões Rinpoche comentou que algumas pessoas que vinham até ele se vestiam como praticantes mas não tinham na realidade qualquer experiência interna estável, ao passo que havia outros que pareciam ser pessoas bastante comuns e que não tinham de forma alguma a aparência de praticantes mas que eles eram de fato verdadeiros praticantes. Para Rinpoche, um verdadeiro praticante era alguém que reconhecera a pura natureza e alcançara estabilidade em estabelecer-se ali. Ele enfatizava para nós o fato de que não podemos julgar ninguém somente pelas aparências. Ele fundou muitos centros de retiro depois de ter se mudado para a Índia no final dos anos 50, dessa forma, aqueles que vinham a ele podiam praticar em lugares apropriados e assim exercerem os ensinamentos obtendo experiência com eles em primeira mão.

Prática

Ele nos chamava a atenção para o fato de que temos que praticar o Darma no sentido de obtermos os benefícios dele para nós e para os outros. Rinpoche passou muitas décadas de sua vida fazendo simplesmente isso e frequentemente sob as mais difíceis condições. Por muitos anos ele vagou pelo Tibete permanecendo em cavernas ou numa pequena tenda com nada mais do que aquilo que podia carregar em seus ombros. Poderia facilmente ter passado seus dias no conforto e comodidade de alguns dos mais ricos mosteiros. Viveu verdadeiramente uma vida de exemplo daquilo que mais tarde encorajaria outros a fazerem também.
Um mestre não é capaz de nos dar algo que já não tenhamos. Ele ou ela simplesmente nos alertam a respeito de nosso potencial verdadeiro e inerente. Fica por nossa conta compreender e alcançar experiência verdadeira do nosso estado natural interior ao acolher tais conselhos em nosso coração. Ele estabeleceu muitos lugares simples onde os praticantes ficariam juntos ou onde pudessem estar sozinhos para praticar o Darma sem qualquer distração. Rinpoche sempre enfatizou a necessidade de alcançar experiência através de retiros e quase que a grande maioria de seus estudantes esteve em um ou dois retiros sob sua orientação e cuidados.



Compaixão

A motivação de um verdadeiro Bodissatva é a de que nossas vidas deveriam ser uma expressão daquilo que pode trazer benefício ao outro, cada ação é preparada no sentido de orientar o próximo em direção à verdade. Mais do que dispender nossas preciosas vidas e energia em atividades sem sentido e em distrações, ele nos encorajava a beneficiar os outros através da prática coordenada e sincera motivada por bodichita. Da mesma forma que o perfume de uma flor que não precisa de nada em particular e mesmo assim afeta e purifica todo o ambiente com seu aroma, assim também nossa prática irradia sua fragrância através do espaço.
Logo depois que Rinpoche exilou-se na Índia vindo do Tibete ele fez um voto de renúncia ao consumo de carne. Isso aconteceu nos anos sessenta, muito antes de se tornar moda. Antes, ele fora um contumaz consumidor de carne como qualquer outro tibetano. E uma vez que ele decidiu abster-se, sua postura tornou-se imutável, todos os templos e centros sob sua direção tornaram-se lugares onde não se consumia carne. Aqui novamente ele foi um exemplo daquilo que pregava e viver até a idade em que ele viveu simplesmente comprovou o fato de que seres humanos podem sobreviver saudavelmente seguindo uma dieta vegetariana.
Ele fez uma missão da tarefa de libertar incontáveis números de peixes dos viveiros em Kolkata e outros lugares. Outras espécies de vida selvagem também foram resgatadas de forma semelhante. Sua compaixão revelou-se através de uma série de atividades que trouxeram liberdade a incontáveis seres sencientes.

O Humor

Era um deleite passar o tempo na companhia de Rinpoche. Havia sempre uma profusão de risadas e desafios de caráter leve e divertido. Houve muitas ocasiões bem humoradas mas uma delas por algum motivo me ocorre agora. Num dos anos em que estávamos no Centro de Retiro em Lhakhang, na região de Helambu, Nepal. Naquele momento um grupo de devotos tinha vindo de Sermatang para acompanhar Rinpoche ao mosteiro deles. Perto de trinta dos mais velhos e do mais elevado escalão dos moradores do vilarejo tinham feito a jornada a pé para saudar Rinpoche e acompanhá-lo de volta até lá. Haviam trazido com eles um pequeno e robusto pônei que Rinpoche deveria montar na trilha até o lugar de destino. Esse pônei era um velho conhecido e particularmente um animal favorito de Rinpoche; tinha sido usado por ele em outras situações no passado
Na manhã em que estávamos a ponto de partir todos se reuniram próximo à cabana de Rinpoche. Ele montou no pônei e um grande e feliz sorriso brotou de sua face. Um dos lamas seguiu à frente manejando um facão para assegurar que o caminho ficasse livre de qualquer ramo de árvore ou outro obstáculo e os restante de nós seguiu atrás. Mal o pequeno animal começou a se mover, expeliu um pum muito alto! Nós podíamos ver Rinpoche adiante se chacoalhando de tanto rir e todo mundo fez o mesmo. O fato é que o animal continuou nesse entusiasmo a cada poucos minutos, o caminho todo até chegar em Sermatang. Sabe lá Deus o que ele tinha comido em seu desjejum! Não é preciso dizer que todos mantivemos uma distância considerável e respeitosa dele.

A Visão

Acima de tudo, Chadral Rinpoche nos encorajava a reconhecermos nossa verdadeira natureza, já que absolutamente nada mais será de utilidade para a longa jornada. Este, e somente este é o ponto principal e crucial. Ao reconhecer e praticar, traremos todos os outros demais fatores de nossa vida a um equilíbrio. Essa é a grande panaceia, a única coisa que traz resolução a tudo que causa confusão e sofrimento neste mundo. Numa ocasião incrivelmente preciosa, quando ele transmitiu a alguns de nós suas instruções quintessenciais, referiu-se a essas orientações dadas, como se fossem 'o sangue de seu coração'. Tal tesouro tem o poder de liberar incontáveis seres; precisamos apenas abrir nossos corações e rezar com devoção direcionada. Nossa devoção é como o sol que derrete a neve no topo da montanha.

Devoção

Alguns dias após divulgarem as notícias de seu falecimento, eu me pus a caminho do Nepal vinda do sul da Índia. Estivera lá pela primeira vez depois de quase dez anos, em agosto de 2015 e tive a grande sorte de ver Rinpoche nas cercanias de Parping em inúmeras ocasiões. Tinha ido com o intuito de prestar minhas homenagens enquanto ainda estivesse na região e assim, vim desde Darjeeling, tendo passado os meses de verão em minha cabana de retiro nas montanhas.
No entanto, essa última visita foi feita sob circunstâncias muito diferentes e trazia consigo um sentimento também diferente. Em plena metade do inverno e na pressão não apenas do frio mas também da profunda miséria econômica e política, havia ainda uma nova dimensão adicionada ao sentimento de tristeza pelo seu falecimento. Cortes de energia descomunais e escassez de alimentos de todo tipo eram então a ordem do dia e isso não se devia apenas aos resultados do forte terremoto que acontecera há alguns meses. Tudo isso era devido à ganância e visão limitada de uma elite privilegiada. Apesar disso tudo, ou mesmo por causa disso, tanto a população próxima quanto a distante veio a Parping. Vieram em caravanas para prestar suas homenagens e receber as bênçãos desse relicário.
Inicialmente passei alguns dias dentro da capela do Templo e participei da cerimônia que estava acontecendo. Mas então, tudo ficou tão congestionado de pessoas que me retirei para um lugar no lado de fora, abaixo da área do templo. Toda noite, antes que o puja terminasse, eu me dirigia ao templo e permanecia perto de uma janela aberta para poder recitar as palavras da oração do Guru Ioga junto com os lamas que estavam reunidos em seu interior. Para mim, esse veio a ser o momento mais comovente dos dias em que pude estar presente ali. Invariavelmente, assim que o umsey, o dirigente dos cantos, começava a cantar essa oração em particular, sua voz embargava e se desvanecia. Algumas vezes ele tinha que parar de cantar e daí outro lama rapidamente tomaria seu lugar. Rinpoche tinha arrebanhado tantos de nós para estarmos juntos que o sentimento de que éramos e somos uma grande família ainda permanece. Como poderemos esquecer sua gentileza?

Um exemplo

Dia após dia eu me sentava e assistia a torrente humana, jovens e velhos, ricos e pobres, todos passando ao redor e no recinto do templo onde o Kudung estava disposto. Não foi fácil a essas pessoas fazerem essa jornada às margens do Vale de Catmandu. Os meios de transporte deles eram inadequados e com frequência, terrivelmente super-lotados. E eles continuavam vindo...
É profundamente comovente e tênue de se ver como a vida de alguém que é motivado em direção ao benefício do próximo pode influenciar tantas pessoas em contrapartida ao lucro temporário e ganância que existem às custas de tantos outros. Que contraste marcante e mais ainda, comovente, tudo ser assim!
Precisamos de bons exemplos de como viver nossas vidas e como dar prioridade àquilo que é mais significativo. E com certeza não teremos muitas oportunidades de constatar isso. Onde quer que olhemos podemos encontrar inúmeros exemplos de vidas gastas em dissipação e distração, ao passo que uma vida bem vivida é de fato algo raro.
Posso apenas me rejubilar no exemplo de Rinpoche que foi e permanecerá sendo profundamente significativo, não apenas para mim mas também tantos outros. A radiância do que ele legou ao mundo continuará a ter seus efeitos benéficos no futuro e de fato a humanidade tem um longo futuro antes disso. Nos dias de hoje, não podemos ter certeza de nada exceto dessa única coisa verdadeira da qual falamos ao longo deste texto.
Que você seja movido a descobrir por si mesmo e desse modo fazer sua própria vida ressoar com o que é verdadeiramente significativo. Com a pura motivação de Bodichita, a pura intenção de alcançar iluminação para o benefício de todos os seres sencientes, cada um de nós tem o poder de transformar o mundo.

Que possamos manter para sempre tal pensamento em nossos corações e mentes.

Precioso Bodichita, a mais elevada atitude!
Onde não tiver nascido, que germine!
Onde nascer, que cresça
elevando-se cada vez mais na direção do Alto.”


Shantideva